sábado, 27 de setembro de 2008

2.1 Quando chegou à Recife, Lucas se sentiu totalmente perdido. Em outro planeta. As pessoas não iam à missa rotineiramente e até os muros das igrejas já eram todos pichados. Logo viu que as coisas não seriam nada fáceis. Seu "puxar de erres" lhe batizou como "o caipira". E como vinha de uma cidade muito simples, acabava sendo ingênuo demais e sofrendo por ser o maior alvo das brincadeiras dos "coleguinhas".
Mais mil-e-uma coisas como o fato de ser pouco queimado - vulgo: branquelo -, magrelo, alto e desengonçado não o ajudavam muito.
Odiava todos os pernambucanos. Além do mais, como aqueles "matutos" reclamavam tanto do seu sotaque paulista? Feio era como eles falavam! E se não bastasse "feio", definia-o como indecifrável. Eles falavam tão errado e rápido que parecia outro idioma.
- Matutos idiotas! - Por vezes resmungava.
Mas o que mais lhe enlouqueceu foi a falta. A ensandecedora falta. Depois da primeira semana em Recife, a trouxinha que sua amiga havia lhe presenteado acabou.
Ele foi parar no hospital diversas vezes. Sua tia costumava vê-lo sentado no canto da sala com as mãos na cabeça, se balançando inquieto, ou roendo todas as unhas, quase engolindo os dedos. Ela tentou ajudar, mas ele não queria conversa. Se irritava com qualquer coisa, tremia muito, nunca dormia.
Sua mãe quase não percebeu. Não fosse a tia de Lucas lembrá-la de seu filho de vez em quando. Mesmo assim, o máximo que ela chegou foi presumir que era coisa de adolescente, normal quando os pais se separavam e tudo mais.
Foi um final de ano bem difícil para ele. Tanto que conseguiu bombar em todas as matérias e reprovou o 2º ano.

{continua...}

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

2. Lucas e Dani não eram exatamente como velhos amigos de infância. Eles se conheciam a pouco mais de um ano. Lucas havia morado em alguma cidade interiorana de São Paulo por longos e chatos 15 anos de sua vida.
Era uma cidade tão pequena que se você tirasse uma nota menor que oito na escola, no domingo o padre daria um sermão na missa sobre a "falta de responsabilidade dos jovens hoje em dia". Mas claro que como nenhum outro garoto normal da idade de Lucas, aos domingos ele não só não ia à missa nenhuma, como também aproveitava o dia para fugir com sua amiga Duda para estudar - o que era uma boa desculpa para poderem ficar chapados juntos e saírem escondidos pra pichar o muro da única escola da cidade ou coisas do tipo.
Foi numa dessas aventurazinhas de domingo que Lucas foi preso e sua mãe, Laura, após pagar uma altíssima fianças e escutar o delegado falando por horas sobre a importância dos pais na vida dos seus filhos - que na verdade foi o que mais a irritou - resolveu que iria morar com sua irmã mais velha em Recife. E levaria Lucas junto com ela.
Podemos dizer que ela aproveitou-se bem da situação. E ate se sentiu um pouquinho mal ao ver seu marido de chapéu e botas de cowboy - ridiculamente caipira, rabugento e fedorento - grunhir algo como
vadia, arrumar a fivela enorme do seu cinto, cuspir no chão e dizer:
- Não vou a lugar algum!
Mas esse sentimento triste foi apenas por alguns segundos. Antes dela se lembrar do casamento com comunhão de bens. Depois disso foi só alegria. Partiriam para Recife em duas semanas, o que Laura considerou tempo suficiente para Lucas acostumar-se com a idéia e pra ela dar início às papeladas e burocracias do divórcio.
Foram as duas semanas mais longas da vida de Lucas, uma vez que ele não via a hora de sair daquela cidadezinha medíocre. Porém, na hora de sua partida, quando olhou os doces olhos cor de mel de Duda, sentiu um vazio enorme dentro de si, foi como se percebesse naquele segundo o quanto ela lhe faria falta. Como se deixasse um pedaço seu para trás.
Respirou fundo e foi abraçar a única pessoa que havia lhe entendido e acompanhado durante tanto tempo. Duda tentou chorar aninhada aos braços do amigo, mas estava tão chapada que não conseguia.
Relutantemente ela enfiou sua última trouxinha de erva no bolso do casaco dele sem que ninguém notasse, o que dali a algumas horas, no avião, Lucas iria descobrir como a maior representação da afeição dela por ele e ia até parar de se sentir tão constrangido por ter sido tão sentimental na hora de partir dando um beijo na testa da amiga, como se quisesse protegê-la do que ela teria que viver ainda ali e, pior, sem ele ao seu lado.
Ele nunca iria esquecer o sorriso sereno da amiga.
Nunca mesmo.

1.4 Diferentemente dos outros, Vitória tentava resolver alguns exercícios da enorme apostila e, parecia mentira, mas ela já tinha conseguido responder os três primeiros.
Jéssica guardou o espelho na bolsa e olhou distraída para eles. Dani rapidamente tratou de inventar que fazia algo. Lucas abria e fechava um isqueiro de prata com sua inicial gravada bem no meio, com algum material que realmente parecia ouro. Aquele isqueiro e um anel também de prata que ele usava no polegar eram seus dois maiores xodós. Amanda mascava chiclete e ouvia alguma coisa - provavelmente um reggae - com seus fones de ouvido. Ao olhar para Vitória se assustou. Ela realmente parecia estar fazendo algo de mais produtivo.
Jéssica se levantou e lentamente começou a caminhar ao redor da mesa. Bruscamente ela puxou o fio do fone de ouvido de Amanda e sussurrou no ouvido dela:
- Joga o chiclete ali! - Apontou para uma lixeira no canto da sala.
Os outros permaneciam fazendo as mesmas coisas, sem se importar nem um pouco com Jéssica.
Ela olhou para a folha rabiscada de Vitória e reparou que todas as respostas estavam certas.
- Você vai prestar vestibular pra quê? - Sussurrou Jéssica no ombro de Vitória.
- Não sei... Arquitetura, eu acho. Sabe que meu pai disse que eu tenho cara de pediatra?!
Jéssica suspirou aliviada. Ela não era sua concorrente. Mas por via das dúvidas, iria atrapalhar um pouquinho os estudos da garota. Apontou para Vitória e falou alto o bastante para todos da mesa ouvirem.
- Você!
- Eu? - Vitória perguntou-lhe assustada.
- Vai ajudar o Lucas a fazer o seu módulo. - Continuou Jéssica, apontando agora para Lucas.
Depois olhou disfarçadamente para Dani, arqueou a sobrancelha esquerda e sorriu cinicamente. Exatamente da forma que Dani tanto conhecia e odiava.
Já Vitória não sabia como entender aquela expressão da monitora. Se ela estava querendo desafiá-la ou se era apenas uma de suas caras de gozação. Olhou para lucas, ele sorriu. Seu sorriso era doce e inocente como de uma criança, mas algo em seu rosto revelava traços de um menino muito esperto e safado. Porém naquele instante, seu sorriso de dentes amarelos seria persuasivo o bastante para Vitória aceitar a idéia da monitora sem nenhuma contestação. Ele pegou seu módulo e sua caneta e sentou-se do lado dela, no lugar onde Jéssica estava.
- Daniela, você pode ajudar a Amanda se quiser. - Jéssica e Dani olharam para Amanda na mesma hora. Ela tinha acabado de jogar o chiclete no lixo e estava sentada com a cabeça apoiada nos cotovelos. Encarou um desenho que havia feito no seu módulo que parecia muito com uma caricatura do Bob Marley fumando um baseado enorme, mas elas não tinham muita certeza.
Dani voltou a encarar Jéssica. Como ela podia ser tão idiota? Obvio que tinha planejado isso. Jogar a louca hippie pra estudar com ela.
Arghh!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

1.3 Através de uma janela de vidro, Lucas e Dani observavam atentamente as duas meninas recolhendo os livros lá fora da biblioteca.
- Elas não são lá da sala? - Perguntou Dani.
- Sei lá! São duas tontas, mas eu gostei da magrinha.
- Você gosta de qualquer uma, Lucas. A questão é: sua namorada gosta disso?
Lucas olhou-a com indiferença e nem se deu ao trabalho de responder.
- Olha só, parece que elas tão vindo pra cá. - Falou Dani.
- É, estão mesmo! - Exclamou Jéssica que acabara de chegar à mesa - Bom, vocês já me conhecem, essas daqui são Amanda e Vitória. - falou apontando para as meninas que acabavam de chegar - Eu serei a monitora de vocês. Vamos começar resolvendo módulos que o próprio professor me orientou para auxiliar-lhes a fazer.
Jéssica parou por alguns estantes olhando fixamente para Amanda. Ela parecia fora do mundo.
- Os módulos, Amanda! Onde estão? Distribua-os. - Ela teria gritado se não estivesse numa biblioteca. Mas falou o mais alto possível. Fazendo Amanda quase cair da cadeira.
Amanda entregou-lhes um por um módulos idênticos com a palavra Estequiometria enorme na capa e depois voltou a se sentar, pegando um pra si própria.
Jéssica sentou na cadeira e disse:
- Podem começar.
Amanda ficou parada... Olhou para os lados. Os outros pareciam ler aquilo. Ela levantou seu módulo segurando-o apenas pela primeira página, com o dedo bem encima da palavra Estequiometria e perguntou:
- O que danado é isso? - Olhava pra Jéssica confusa.
Todos a encararam espantados como que se perguntando: como ela teve coragem de fazer uma pergunta tão idiota pra essa monitora?
Jéssica a encarava como os outros, só que sua pergunta era: como alguém pode ser tão burro?
Todos a olhavam estáticos, então Vitória se mexeu desconfortavelmente na cadeira.
- Sua Jegue! Você não lê? ES-TE-QUI-O-ME-TRI-A! Se trata de química! É pra isso que estamos aqui! Monitoria de química.
Amanda continuou sem entender nada. Deu de ombros e passou a rabiscar algo no seu módulo. Sem dar a mínima importância para o fato de que todos a olhavam.
Jéssica apenas balançou a cabeça negativamente e foi mexer na sua bolsa nova da
Kipling. Tirou de dentro da bolsa enorme um brilho labial e um pequeno espelho. Começou a passar o brilho se olhando pelo espelho. Mesmo sabendo que qualquer idiota notaria quer pra passar brilho transparente não precisa-se de espelho. Depois ficou arrumando os cabelos.
Daniela ainda não conseguia entender como aquela nerd nojentinha seria monitora deles. E ainda por cima ela estava com uma mochila idêntica a sua, só que a de Jéssica deveria ser falsa, ela podia apostar como era. E além do mais a de Dani era totalmente rosa, como quase tudo dela. E a de Jéssica era cinza.
Reparou o quanto Jéssica estava preocupada com a aparência e deduziu que ela se arrumava para se encontrar com o Professor de Química, só tendo um caso com aquele professor idiota para convencê-lo a lhe dar um cargo daqueles. Lembrou-se que o tal professor era velho, barrigudo e ca-re-ca.
Eca!
Depois sentiu-se ainda pior ao lembrar-se que sua bolsa estava
furada. Uma porcaria de furo provocado na tarde anterior, quando Lucas descuidadosamente derrubara uma guimba de cigarro acesa ali. Odiou-se por ter tanto azar de estar com a bolsa furada justo naquele dia. Quis matar Lucas e seu vício idiota.
Mudou a posição da bolsa escondendo o buraco que afinal era quase impossível de se ver a olho nú. Imaginou a cara que Jéssica teria feito para ela se percebesse. Ia arquear uma única sobrancelha e dar aquele sorriso cínico dela.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

1.2 Eram três garotas.

Uma delas era magrela e desengonçada e estava de quatro, no chão, tentando catar uma porção de livros. Seus cabelos lisos e louros escorriam pela face atrapalhando sua visão e fazendo-a derrubar de novo os livros que já tinha pego e empilhado. Seu nome era Vitória.
Outra, Amanda, era baixinha e estranha. Seus cabelos pendiam num coque atrás da cabeça amarrado por trancinhas finas do próprio cabelo que vinham desde o início da testa. Notoriamente um trabalho demorado. Mas provavelmente, bem antigo. Poderia ter sido assim desse mesmo jeito por anos, ela não tinha cara de quem ligava muito para o cabelo ou a aparência, ou até mesmo a higiene. Parecia estar chapada. Lucas conhecia bem essa expressão.
A terceira era conhecida deles dois. Jéssica. Ex-melhor amiga de Dani. Uma garota bem arrogante que tinha o péssimo costume de se achar a melhor em tudo.
- NOSSA! VOCÊ SABE O QUANTO ESSES LIVROS IDIOTAS ME CUSTARAM? - Perguntou Jéssica irritada.
- Ei! VOCÊ sabe o quanto me custou trazê-los até aqui? Aliás, porque diabos só eu e a Amanda estamos carregando os livros? Ficaria bem mais fácil se você nos ajudasse. - respondeu Vitória, a coitada que provavelmente teria derrubado todos aqueles livros no chão fazendo aquela barulhada toda.
- Bom... sabe como é... a Jéssica me deu dez conto em troca de ajuda nas aulas. - argumentou a tal Amanda dando de ombros. - Ela é sempre tão lesada assim? Acho que era melhor você estudar sozinha em casa. - Cochichou para Jéssica.
Jéssica olhou-as estarrecida com tanta incompetência e começou a responder gesticulando devagar, como se falasse com duas neandertais.
- Olha só... Porque vocês... - apontou para as duas - não apanham esses livros - apontou para os livros - e me encontram lá dentro? Estarei lá, ok? Lá! - Terminou apontando freneticamente para a biblioteca. Depois virou-se e caminhou lentamente para onde havia apontado. Uma delas começou a reclamar de algo mas ela se recusou a dar ouvidos.
- Acho que quebrei minha perna! - Vitória disse com uma expressao alarmada no rosto. - Vai ter que apuntar!!! - Sacudia a perna assustada.
Jéssica sabia que Amanda com toda a sua paciencia conseguiria acalmá-la.
Parece que essa Vitória iria entrar fácil para sua listinha Top 10 de Idiotas do Ano. Como alguém conseguiria ser tão burra e tropeçar no nada daquela forma? Porque a droga do Professor de Química não lhe dera uma tarefa mais fácil do que ensinar aquelas idiotas? Preferia um zero na média. Droga de vida!
Só duas coisas faziam-na se sentir bem de estar ali: ver aqueles debilmentais inventando que estudavam algo - quando na verdade todos sabiam que só passavam de ano com muita cola, ou dormindo com o cara da tesouraria - e claro, saber que dali a um ano, quando já teria 18 anos, estaria bem longe deles.
Jéssica suspirou e seguiu até o bibliotecário, Marcos.
- Muito bem, Marcos, diga-me que ninguém apareceu! - sorriu falsamente e ele devolveu-lhe o mesmo sorriso apontando para a mesa onda já estavam Dani e Lucas. Ela conhecia eles, bem até demais. Não acreditava que era pra eles que ela teria que dar aulas. Não esperava que esse tipo de gente frequentasse essas monitorias ridículas. Mas não podia fazer mais nada além de ir lá e dar a porcaria da aula.

Viu suas duas assistentes procurando-a na porta e seguiu para a mesa onde estavam os outros. Se ela fosse até a porta corria o risco delas pedirem sua ajuda para carregar o material.

1. Início

Daniela sentou-se na cadeira azul da biblioteca e jogou seu fichário da Hello Kitty sobre a mesa. Não havia chegado mais ninguém do grupo de estudos além dela, porém soube pelo bibliotecário que realmente haviam outras pessoas inscritas.
Tirou de dentro de seu fichário um livro laranja, Comédias Para se Ler na Escola. Passou a folheá-lo. Não conseguia acreditar que um livro como aquele cairia no vestibular. Era um lixo. E apesar do título, não tinha a mínima graça. Ela preferia romances, casais apaixonados... almas gêmeas!!
- Foi mal, Fernando Veríssimo, mas você é um saco!
- Falando sozinha é, Gata? - Perguntou-lhe Lucas que acabara de chegar e sentar-se ao seu lado.
Lucas era um garoto alto, forte, bonito e extremamente convencido. Seu sorriso jovial e um pouco safado deixava muitas garotas loucas. Mas não Daniela.
- Olha Lucas, de felinos já basta seu gatinho, né?!
- Que gatinho?
Daniela sorriu e piscou pra ele.
Acontece que um ano atrás, um cara espalhara que Lucas, o maior homofóbico do colégio, tinha medo de ficar sozinho em casa e por isso tinha um gatinho lindo que trouxera da rua para lhe fazer companhia. A história era bem improvável, mas apesar de odiar a fofoca, Lucas nunca negara nada.
- Olha você, Dani! Vê se não me enche ou então juro que desisto de te fazer companhia nessa aula chata!
- Ah, Lucas! Nem vem, que todo mundo sabe que você só ta aqui porque tem que passar o tempo enquanto espera sua namoradinha sair da aula. - Protestou Dani.
- Não é bem assim... - Antes de Lucas terminar de falar ouviram um barulho enorme seguido de gritos, vindo lá de fora.